Divagações sobre God of War, Valhalla e o futuro do franchise

Este artigo é uma tentativa de organizar pensamentos e ideias sobre o franchise do “God of War”, depois de jogar “Valhalla”, dado a forma como o dlc conjuga o passado e o presente de Kratos. Vou tentar fugir a uma análise crítica das duas sagas [grega e nórdica] e focar-me de forma abrangente – o mais breve possível – no seu percurso e intenções.

Por um lado…

na saga grega, a nossa primeira introdução a Kratos, este encontra-se a bordo de um navio no mar Egeu, enfrentando legionários mortos-vivos e uma Hydra no meio de uma tempestade. Depois da abertura do jogo, entendemos que é assombrado pelo seu passado. Um passado que tenta esquecer dormindo com mulheres e bebendo. Ignora as lamúrias dos comuns mortais. Não tem interesse em ser um campeão do povo grego, apenas deseja acabar com o seu próprio tormento. Nestas poucas linhas, estava moldado o que viria a ser um dos mais icónicos vilões (ou anti-herói) em videojogos.

Este é o formato da personagem ao longo da trilogia, com raros desvios. É uma personagem que só sabia ser honesto pela – e com – a violência. Era um veículo para a sua raiva, frustração, arrependimento, as suas desilusões, o seu rancor e tristeza. Estas emoções alimentadas pelo percurso sangrento que encararia. Quando chegamos a “God of War III” (GOW III), Kratos é um conceito, um meme, um sentimento de vingança, uma emoção de raiva. Não é do interesse da história complexificá-lo. É um rumor, definido pela violência.

No entanto, não consigo admitir que senti sempre que essas demonstrações fossem genuínas, e na realidade, é onde “GOW III” começa a tropeçar, em parte pelo estranho estoicismo de Kratos em algumas das mortes em “GOW III”, ou os mortais facilmente descartados pelo caminho; ou porque serve o enredo; ou porque é Kratos, e consequentemente, tem que matar1. A gratuitidade e edginess da matança faz parte do espetáculo, porém também precisa de convencer.

Um bom exemplo disso, é a morte de Helios, resumida a uma necessidade inevitável para a vingança de Kratos. A morte de Helios é brutal. Enquanto está indefeso no chão, Kratos ataca-o e aferra as mãos à sua cabeça. A pele e os músculos esticam-se até romperem com o esforço de Kratos…. Até aqui, tudo bem. O momento perde-se a seguir quando Kratos, de sobrancelha erguida, pouco impressionado e com cara de poucos amigos, levanta a cabeça de Helios para a “câmara”. É um, dos múltiplos momentos, em que o jogo quer mostrar que Kratos é um verdadeiro durão. O durão dos durões.

Esta saga foi definida pelo novelesco nas suas reviravoltas, desenganos e intriga; pelo teatral nos “Zeus! Your son has returned. I bring the destruction of Olympus!” e “Athena!! Ten years have been. I have faithfully served the gods for ten years. When will you relieve me of these nightmares”; a ocasional sobrecarga de emoção traduzida nas entranhas dos inimigos, do bombástico tremor dos sopros e percussão e a elevação do coro; os vastos placos nas lutas contra titãs como o Kraken, Ares e Cronos; as QTE’s (Quick Time Event) excessivas de corpos a serem puxados, mutilados, arrancados; e infelizmente, pelo sexismo, nem falo das foleiras sequências de sexo (que encontram o seu cúmulo em “GOW III” com a sequência ultra machão com a Afrodite) ou das silhuetas que dominam a maioria dos corpos femininos, a fraca representação – e a até a ausência – de divindades e criaturas mágicas femininas é notável (com algumas excepções, como Gaia e Atena)1. Hera, a deusa rainha do Olimpo, é morta com um mero torcer do pescoço. Um acidente de raiva de Kratos. Nada de espetáculo, uma inconveniência. Os exemplos positivos existem, mas são raros.

Apesar disso,

era o mundo contra o Kratos, e nós adorávamos.

De certa forma…

a saga pode ser abordada de diferentes perspectivas: a crítica da falta de criatividade nos grandes estúdios (à semelhança do que acontece na indústria de cinema americana) ao reciclar personagens antigas; a escolha de um design seguro e restritivo que certifique uma audiência maior; a problemática em redimirmos os nossos vilões; a quebra de tom e visão entre sagas; entre outras…

outra perspectiva é a de

David Jaffe, director do “God of War” original, que comentou num vídeo recente que:

I don’t want these characters to grow (…) This is not what this character is.

Comparando Kratos ao Indiana Jones e James Bond na sua reacção ao Kratos em “Ragnarok” e “Valhalla”. Enquanto que o comentário vem de alguém inconstante e e irascível, engloba um sentimento partilhado por mais pessoas.

Por outro lado…

a saga nórdica e esta reinterpretação da personagem surgem cinco anos depois de “GOW Ascension” e oito anos depois de “GOW III”, e é difícil de negar que o franchise necessitou de uma renovação quando já se esgotava completamente após seis jogos.  

Sinto dificuldade em aplicar o comentário de David Jaffe sobre Kratos, como um protagonista preso a conceito fechado, quando foi uma personagem com um percurso e final tão definitivo na trilogia principal. Os dois jogos seguintes [“Ghost of Sparta” e “Ascension”] enfrentaram a dificuldade de manter a personagem relevante, desvendando pedaços do passado sem conseguirem provocar da mesma forma. Em “Ascension”, especialmente, Kratos era somente um boneco para malhar botões. A saga parecia estar condenada a inventar enredos para escalar e regurgitar a violência e o espetáculo destrutivo.

Enquanto acredito que seria possível um novo “God of War” fiel aos tons da saga grega, ao mesmo tempo emocionalmente mais maturo e inteligente, contudo, teria de ser sem o Kratos – pelo menos no imediato.

Assim, se corporativamente, as companhias [SONY e Santa Monica Studio] não queriam abandonar este franchise e o seu já icónico protagonista, para onde ir? “God of War” (2018) foi a resposta final do estúdio. Uma reinterpretação ou reinvenção da personagem que, parafraseando, Cory Barlog, surgiu do próprio amadurecimento dos trabalhadores do estúdio, muitos, agora pais e mães.

Assim, nessa nova percepção, o que se podia fazer com uma personagem que já não dependia ou quer depender da violência para ser honesto? Kratos, novamente pai, também ele, tinha que amadurecer e mudar.

O jogo começa, brevemente, num formato familiar. No menu de jogo, temos Kratos presente, tal como na trilogia original, mas ao iniciar esta história não temos um cliffhanger sobre o futuro, uma narração expositiva ou cortamos para combate depois de uma cutscene. Apenas corta uma árvore2. Temos um Kratos velho, com ligaduras a esconder as marcas das correntes das Blades of Chaos cravadas nos seus braços. Agora carrega um machado. Não vamos lutar com uma Hydra ou confrontar um deus, apenas realizar ritos funerários. Entendemos rapidamente que a fonte dramática não é a mesma; este “novo” princípio não se entrega ao melodrama. Surge uma leveza no tom da história, estranha até então, permitindo momentos cómicos onde Kratos faz de homem sério. É frio, disciplinado e temperamental de uma forma que nos convence que é a mesma pessoa; e ainda tem lições por aprender. É um pai que ama à sua maneira, encurralado pelo seu passado e receoso em falhar. O enredo vai voltar a enrolar Kratos na trama desta nova mitologia, mas há uma nova preocupação nas personagens. É uma jornada íntima, de pai e filho, do passado e presente.

O corte com a saga grega, não é absoluto. O título da caixa é “God of War”, por isso, o combate e os puzzles chegam eventualmente. Mas esses elementos também se modificam com a opção de saltar removida; Kratos, caminha de pés assentes no chão (praticamente). A câmara aproxima-se do protagonista mudando o ritmo de combate. Os ataques têm mais peso quando rasgam a pele e ossos dos adversários, e Kratos não se mexe tão habilmente. Enquanto o jogo perde a intensidade do enredo que determinou a jornada de vingança de Kratos, o combate guarda essa qualidade e eleva-se.

O cepticismo e pessimismo prenominaram as primeiras impressões, mas, acabou por convencer.

Duas sagas opostas?

é uma frase que surge mais vezes em afirmação, no entanto, prefiro colocar a dúvida. Não vou defender que seguem milimetricamente os mesmos princípios e intenções; isso é claro, especialmente considerando os contextos em que surgem3. Mas persiste alguma continuidade entre os dois.

  • Há uma maior atenção para expressão corporal e facial do que na saga grega, contudo, a honestidade permanece. Nos diálogos é raro que um sentimento ou uma mudança não fique explícita. É um estilo de escrita mais presente em “Ragnarok” e “Valhalla” que a primeira entrada. Por exemplo, o fim de uma interação entre Kratos e Mimir, o último diz – parafraseando - ”Nothing, you’ve changed brother.“. É possível que esteja a ser mesquinho ao salientar isto, mas nesta saga houve uma abertura para o silêncio que tem se perdido. Nós já sabemos que Kratos mudou, Mimir também o sabe, vai o afirmando e reforçando ao longo de “Valhalla”; e o que seria um pequeno momento para respirar, tem que ficar bem cravado. É sintomático. O guião procura ser honesto e explícito, e, mesmo que seja do meu desagrado, sempre foram bandeiras deste franchise.
  • Recuamos na violência, não em quantidade ou qualidade mas na sua expressão, o verbo principal é malhar. A crítica ou simples adjectivação dos jogos modernos serem cinemáticos ou querem ser filmes em comparação aos anteriores, perde-me um pouco quando os elementos videogamey persistem apesar do lado mais sério que não abandona juvenilidade da saga grega. Em “God of War” (2018) temos reinos visitáveis que se resumem a combate, além de inimigos elite para derrotar e arenas de combate únicas; na sequela, além desses elementos, ainda temos um DLC Roguelite [“Valhalla”] que abraça essa natureza arcade dos originais. Mesmo fora do combate os jogos, de forma meta, fazem piadas de certos elementos do design ou do comportamento de Kratos
  • Enquanto no primeiro jogo [“God of War” 2018] também recuamos em escala narrativa, no segundo volta-se a abraçar uma ameaça universal, e tenta ser mais explosivo. Nunca chega à escala multicamada das lutas na mitologia grega (o que é uma desilusão). Porém, a calma entre lutas nos jogos recentes, cria uma tensão, ausente na saga anterior, quando despoleta um confronto de deuses.
  • A distância da tonalidade narrativa entre as duas sagas não impede que estejam ligadas. A jornada íntima de Kratos e Atreus (seu filho) em “God of War” (2018), apenas tem peso pelo passado do protagonista. Conhecemos os seus medos e a sua vergonha. O significado daquelas lâminas amaldiçoadas. Se a reinterpretação de 2018 não tivesse interesse em complexificar as consequências e contornos da personagem, não precisaria de mostrar tanta atenção a esse passado. Essa faceta não é só acarinhada em 2018, como se torna o centro dramático de “Valhalla”5.

Num à parte…

é impossível concluir este texto sem mencionar os cansativos comentários a lamuriar a perda de masculinidade em “Ragnarok” (e que perdura neste epílogo). Qualquer conversa crítica é inexistente, por isso não merece grande destaque.

Mas…

talvez para quem siga o jovem conservador de direita sem entender a ironia ou acha que um influencer tem maior discernimento sobre a definição do que é um homem, ou até que a masculinidade se encontra em páginas de redes sociais chamadas trad west ou sigmamale gatekeeping, talvez o Kratos possa ser menos homem. Afinal, não há nada menos masculino do que perguntar a um amigo se está tudo bem.

Mimir… What is at odds between you and Sigrun?

…e por falar em Valhalla

Praticamente um ano depois o DLC é anunciado como um epílogo a “Ragnarok”. Valhalla foca-se em recontextualizar o passado (e decisões) de Kratos além do que a trilogia original explorou5. Em “Valhalla”, pega nesse trauma e obriga-o a confrontar-se de um forma emocional que antes seria impossível (cimentando a maturidade do protagonista). Essa confrontação, é à maneira que Kratos sabe melhor, lutando.

Combat can be…clarifying

Assim, “Valhalla” vai misturando e atirando as memórias de Krato, e, eventualmente, chegamos à Grécia. A cabeça de Helios substitui Mimir. A voz sábia e conselheira é substituída por uma provocadora e venenosa. Não é o Helios que conhecemos, é apenas aquele que Kratos tem que encarar.

Quando se materializa o momento do sacrifício do soldado ateniense (“God of War” 2005), Kratos fecha-se. Ele enfrenta cada passo, virtualmente, em silêncio. Lutamos como é esperado, e depois “Valhalla” pede uma escolha. No momento do sacrifício, Kratos escolhe Helios, e rapidamente se arrepende. Há mais uma lição por aprender…

Como escrevi acima, este epílogo tem como centro dramático o passado do Kratos. Tematicamente liga-se ao seu desejo de ser melhor e aos erros que o impedem. Ao perigo do poder. De voltar a sentar-se num trono como Deus da Guerra. A decisão de aceitar esse poder fecha um arco narrativo que começou com o “GOW” (2018) e deixa-nos com algumas interrogações.

Should I, this same man, should I sit?

Depois de “Ragnarok” e agora com a continuação em “Valhalla”, pergunta-se quantos jogos serão precisos para sentir que esta renovação (e introspecção) narrativa canse; e será que já lá estamos? Serão novas mitologias (e consequentemente locais, criaturas, personagens) suficientes para nos entreterem? A mitologia grega foi mais teatral e caricatural, e esta mitologia mais doméstica e menos bombástica; talvez voltem a inclinar para uma mudança de tom? Talvez esta saga possa beneficiar de beber do design linear e directo da anterior para algumas das próximas entradas ou de arriscar nas suas mecânicas. Acima de tudo, o estúdio precisará de não estagnar a fórmula prendendo a imagem de Kratos.

Contudo, com uma nova saga melhor preparada para acumular títulos cronologicamente contínuos, será melhor entregá-la a novas personagens? “Ragnarok” como “Valhalla” têm deixado espaço para personagens secundárias serem exploradas (como Atreus, Thrúd, Sigrun); tendo até papéis proeminentes nestas histórias. Estarão os fãs prontos para aceitar esses rostos? Não seria descabido fazê-lo. Afinal, as mitologias não são definidas por apenas um deus.

(para mais conteúdo relacionado com GOW têm vários artigos como a análise de Ragnarok, Valhalla e um ranking do franchise)

  1. São aspectos que entram em atrito com a decisão da narrativa conectar Kratos emocionalmente a Pandora. Tematicamente, é uma relação incongruente com o resto do jogo. Mas mesmo isso, é algo que Valhalla vai respeitar e tentar explorar. ↩︎
  2. Artemis, Nemesis e Bia são alguns exemplos de figuras que não tem presença na história dos jogos. ↩︎
  3. Não é apenas uma árvore qualquer, mas o artigo não vai explorar isso. ↩︎
  4. God of War original é lançado em 2005. O “reboot” ou reinterpretação é lançado em 2018. ↩︎
  5. Presente em vários níveis: música, criaturas ↩︎
  6. Salienta-se que esta recontextualização foi oportunidade para o estúdio definir ou até redefinir certas decisões e atitudes de Kratos – pelo próprio. Por exemplo, escolhem não pintar o Hércules de GOW III além de um sanguinário sedento. ↩︎

Leave a comment