Análise – Atomic Heart: atrás da cortina de ferro

Começamos num dia de celebração, é o lançamento do Kollektiv 2.0, sonhado por Dmitry Sechenov. É a invenção que irá mudar o rumo da evolução humana para sempre, conectando-a com os autómatos (ou robôs) sobre o mesmo sistema de comunicação. É o começo da nova História da humanidade. O ambiente nas ruas é festivo e descontraído. Os robôs marcham em sintonia mecânica pelas ruas, demonstrando o poderio soviético e o génio de Sechenov, a mente que desencadeou uma era dourada da URSS com a descoberta da substância electro-plástica Polymer.

Após uma – talvez excessivamente longa – introdução à história alternativa de Atomic Heart, na pele de Major P-3, ou Sergey A. Nechaev (o nosso protagonista), com o nosso companheiro de I.A. Char-les (luva), desencadeia o evento central do enredo. Na visita pela “Facility 3826” a pedido no nosso chefe (Sechenov), os pacíficos e obedientes robôs ficam subitamente agressivos, atacando todos os humanos presentes. Tudo o que podia correr mal, corre. O nosso novo objectivo é localizar os traidores e acabar com o massacre. Assim, de machado na mão, rasgamos os primeiros corpos metálicos, pondo à vista o cobre circuitos e luzes do seu interior.

Mas antes de falar sobre a jornada que nos espera, queria falar sobre o mundo de Atomic Heart.

A revolução científica, a automatização do futuro e o lugar do comunismo

Para quem é esta União Soviética alternativa? E para onde se direcionam os ideais comunistas? A figura de Stalin é olhada com algum desprezo, e critica-se as suas violentas purgas nas ruas, mas é nos dito pouco mais que isso. É uma superpotência, tem uma boa relação com a China, tem reputação de nação samaritana – utilizando os seus milhares e milhares de autómatos para ajudar. Apesar disso, ideologicamente, este pedaço da URSS parece estar politicamente à deriva. Talvez propositadamente, como um microcosmo da União Soviética, Sechenov encontra-se envolvido nos complôs do PULITBURO, preocupado em fazer cumprir a sua própria visão para a União Soviética (e o mundo). Deixando o trabalho laboral para as máquinas para que os homens possam dedicar-se à ciência e às artes. Outra figura política proeminente na história, ministro Molotov, procura assegurar uma melhor posição política, questionando e diminuindo as decisões de Sechenov. Ambos lutando pelo favor de Gorbachev – actual líder.

Lançamento do Kollektiv 2.0

É-nos falado do ambiente tumultuoso nos EUA com a enchente de autómatos russos a substituir operários todos os dias. Segundo a lore do jogo, os líderes políticos russos não estão preocupados na forma como afecta os trabalhadores da superpotência rival. Porém não nos dão respostas quanto ao impacto que isto teve sobre a União Soviética em si. Reestruturação de classes? Fim da diferenciação de classes? Educação artística e científica para todos?… Mas para quê pensar em tudo isto quando nos podemos rir das trocas de diálogo entre a máquina N.O.R.A e o Serge? Ou pelo menos é esperado…

Talvez seja possível projectarmos esta deriva político-cultural-social no caso do Teatro Pilsetkaya, um dos locais por onde passamos. “Protejam-se e os vossos subordinados também destes vícios burgueses indignos de um cidadão soviético” escreve, furioso, o director do Museu VDNH num email sobre a situação no Teatro Pulsetkaya. Num golde de poder, Lastochkin tomou conta da administração do Teatro. Nas suas mãos o que era um lugar da arte, tornou-se num lugar de venda de corpos; as bailarinas pertencem ao Lastochkin e à elite burguesa que as compra. Roubaram-lhes a arte, o rumo, a liberdade. Os crimes ignorados e esquecidos na rede de influência e trocas de favores; prendendo todos os seus opositores dentro do Teatro. Numa das lutas finais do jogo um enorme símbolo metálico da USSR no tecto de um pavilhão desfaz-se em pedaços.

Um homem sério num mundo mágico

No site oficial da Mundfish lê-se o seguinte sobre a direcção de arte:

Artem Galeev laid the principles of modern eclecticism as the basis for the design of Atomic Heart, combining imagery from the familiar past, embedded within each of our individual consciousnesses since childhood, with that of a new, previously unknown world of technology and a futuristic USSR.

Há uma natureza abonecada inegável nos robôs que encontramos. A forma peão do rotorbot que ceifa os campos agrícolas, o olhar vazio cómico das tereshkova contrastando com a sua forma animada de falar, os redondos bumblebee que transportam tudo o que for necessário. Esta natureza infantil também se espelha no interior e exterior dos edifícios, convivendo com o brutalismo presente em muitos deles. As estações no exterior para podermos salvar o nosso progresso têm o formato de pequenos cogumelos, de tecto redondo e vermelho. Nos interiores prevalecem formas geométricas, nomeadamente o círculo. Seja nas entradas, nos tectos, janelas, adereços e objectos, é uma imagem constante.

“Os Corvos Negros estão a preparar-se para invadir a União Soviética. Proletários, estejam vigilantes!” lê-se num cartaz de propaganda. Noutros [cartazes] – talvez excessivamente espalhados pelos quartos e salas do complexo – espreita o perigo do fascismo, do capitalismo, do imperialismo, das tentações da burguesia, de um futuro proletário unido da força e coragem dos trabalhadores, etc. As fardas verdes e as camisas brancas dos funcionários bebem o sangue deixado por trás da matança. Vamos apanhando pedaços de informação nos computadores e audio logs, ou até dos corpos que ainda papagueiam os últimos pensamentos pelo polymer que resta no corpo. Começamos a ver as sombras por trás da ciência fantástica, os casos de abuso, os bodes expiatórios.

Ao explorar o enorme complexo 3826, também encontramos laboratórios subterrâneos onde estão guardadas as modificações para as armas. Estes locais estão bloqueados com cadeado electrónico. Para poder aceder ao interior temos de: primeiro verificar as câmaras em redor, de seguida localizar a torre de controlo para depois com a câmara certa abrir a porta. Os laboratórios são normalmente preenchidos de puzzles espaciais para entendermos como navegar um espaço e/ou combate.

Em diferentes pontos do jogo temos acesso a save rooms para salvar o nosso progresso, mas ainda existem checkpoints garantidos de quando a quando. Somos acompanhados dos típicos marcadores no ecrã para nos guiar. Nem sempre intrusivos, mostrando o local mas não necessariamente cada objectivo que temos a concretizar.

E quanto a Serge, o nosso intrépido protagonista, quem é? Num pedaço do diálogo sobre um dos cientistas em oposição à nossa missão, chamada Filatova. Char-les, o companheiro I.A., comunica que é uma neurocirurgiã talentosa, aprendiz de uma das grandes mentes soviéticas do seu tempo, Chariton Zakharov. Acabando por substituí-lo como chefe do sector de neurologia na implementação do Kollektiv 2.0. Além disso, é de momento uma criminosa e uma traidora à Pátria-mãe, conclui a luva I.A. Ao que o Serge responde:

“É pena, até era gira”

Serge, ou P-3, não tem tempo para conversa de cromos e robôs. É um homem de H grande! É um homem de destruir, gritar e cuspir na cara da morte.

De barba rija.

É o tipo de gajo que passa old spice três vezes no corpo inteiro; e lá “em baixo” também enquanto te pisca o olho.

E o maior problema de um homem sério como o Serge, é que não sabe quando calar a boca. Seja falta de noção, por necessidade de se fazer ouvir ou para não ser desmascarado. Apresenta-se da mesma forma que um tijolo a mandar piropos…, mas isso até tem certo charme depois de estares sequestrado a ouvir as suas tiradas constantes ao longo de dezenas e dezenas de horas. Ele não é assim tão mau afinal?

Por outro lado, é bastante divertido malhar nos robôs.

Combater ao som do futuro

É então no meio desta exaltação nacional, ciência mágica e bizarra (credível o quanto baste para as pessoas leigas como é o meu caso) que vamos de pedaço em pedaço na “Facility 3826”, navegando as os vários laboratórios subterrados, resolvendo puzzles e mutilando robôs e mutantes.

Ao longo do complexo Valilov (ou as nossas dungeons tal como o próprio jogo ironiza numa fala do nosso intrépido protagonista), o jogo vai nos “tutorializando” para o combate. A cada etapa, um novo inimigo, uma nova arma, uma nova habilidade. É um combate focado em grupos; com a excepção de alguns momentos como a introdução de um inimigo mais forte ou de um boss.

Há um ciclo identificável assim que obtemos arsenal introdutório: habilidade Shook, arma branca (neste caso o machado), armas de fogo (caçadeira, pistola), arma energética (pistola electro) e os weapon cartidges (fire, frost, electric). Para ficarmos constantemente em combate é preciso rodar entre o arsenal disponível. Ataques físicos alimentam a energia utiliza pelas armas energéticas; habilidades têm cooldowns, e só duas podem estar equipadas ao mesmo tempo; as armas de fogo são limitadas pelas munições no inventário. Cada elemento, e arma, pode ser uma fraqueza a explorar nos automátos e mutantes. Nas duas primeiras dificuldades este ciclo é facilmente ignorado, podendo até focarem-se melee, com as habilidades a complementar.

Facilmente podemos alterar os pontos nas habilidades ou as modificações das armas em qualquer máquina N.O.R.A. (desde que sejam capazes de tolerar as tiradas da máquina). Não somos castigados pela dedicação a um estilo de combate; podemos experimentar e adaptar ao longo do jogo, sem nos preocuparmos com os recursos que encontramos pelo caminho ou que reciclamos dos mutantes e automátos. Contudo, não temos um leque de habilidades, apenas cinco ou seis disponíveis com passivas e melhoramentos directos, como aumentar o alcance da habilidade de Frostbite. Quanto às armas, algumas destas permitem implementar modificações que mudam a sua natureza enquanto outras são retoques; por exemplo, fazer dano extra contra robôs.

As arenas de combate variam entre espaços fechados, como interior de edifícios, e o espaço aberto da “Facility 3826”, onde viajamos de ponto narrativo a ponto narrativo. Quanto ao combate, há duas diferenças chave entre os dois: o número de objectos/assets (mesas, cadeiras, etc) que nos podem socorrer para criar distância – ou pelo contrário atrapalhar – no combate; e o sistema de alarme no exterior, que pode ser desactivado acabando com possíveis reforços como ainda neutralizando todos os autómatos na área temporariamente. Existe um sistema de alarme mais simples, sem estas etapas todas, no interior de edifícios.

Os grupos que enfrentamos seja no exterior ou interior são, essencialmente, os mesmos com uma ou outra excepção. É um combate caótico na grande maioria das vezes que se resume a: esquivar os pontapés e socos dos insólitos vova ou até das suas ondas eléctricas que sulcam o chão gastarmos uns tiros de caçadeira para os afastar, pela esquerda as serras dos pequenos aborers voam outros atiram-se em linha procurando roubar-nos o balanço obrigando-nos a utilizar um dodge (limitado a dois usos seguidos), criamos distância para os despachar mas os mortares bombardeiam-nos recorremos a outro dodge (agora em cooldown) puxamos pelas nossas habilidades, electrificando alguns pchela no ar, atordoando os vova no chão com a electro (pistola energia) trocando para o dominator e rebentá-los com uma bola de energia levantamos os laborers para os arremessar de volta com a telekenisis e despedaçá-los com o leal machado. Quando tudo parece finalmente acalmar, nas nossas costas, no meio da cacofonia, um pchela aciona o alarme, e em segundos, contentores descem do céu. Saltam vovas pintados de preto chiando em passo de corrida , um ou outro rotorbot preparando as suas lâminas e mais uns laborers encetando os motores…

Ao enfrentar este mar de inimigos somos acompanhados de uma banda sonora composta por uma variedade de estilos musicais. Saltando entre o electrónico, o synth, pop, tecno, metal. Não é por acaso que podem encontrar vários artistas nos créditos do jogo.

A música Pesticide, por exemplo, é mais invasiva que outras composições, carregando em cordas estridentes e sopros berrante. Os instrumentos estão em discórdia. Podemos ouvir outro estilo em Huyack, com a contribuição de Zoanid. À semelhança de outras composições, os sons industriais crus filtrados pela electrónica permanecem. Mas aqui tem uma batida constante mantida pela percussão e a electrónica pulsante. Tal como a anterior, é uma de combate. Como último exemplo temos Polivoks e Plyusch, atribuídas a Mick Gordon, com arranjos mexidos, aposta na percussão electrónica. Ou até os remixes de música pop russa dos anos 70 e 80 misturada com techno e metal como é o Arkelino (Geoffrey Day remix) e Zvyozdnoe Leto (Geoffrey Day remix).

Pensamentos finais…

Enquanto tenho dificuldades em definir a identidade do Atomic Heart, posso assumir (e, de novo, o problema é que apenas posso assumir) algumas coisas: é um jogo que quer ser cómico mesmo na sua tragédia, mas a teia narrativa aposta no drama do passado do protagonista e das suas relações pessoais; como em reviravoltas de desfechos previsíveis ou vazios. Serge é um cão fiel, apenas ouve e vê o que lhe dizem, por isso não vê o óbvio do que irá acontecer; o jogo brinca com o seu cinismo e seriedade para o contrastar com o bizarro e as respostas clínicas secas e exaustivas dos robôs e do Char-les. O jogo tenta o humanizar ao mesmo tempo que o faz parte da piada para o próximo skit.

Apesar das comparações feitas com o icónico Bioshock, raramente o jogo se apresenta como uma experiência sombria; até no combate – com a excepção do início – o jogo não nos pede para preocupar com os recursos limitados, e rapidamente entramos num combate frenético longe dos sustos do Bioshock e mais próximo de um retro shooter.

Não é raro o momento em que entramos em longos diálogos expositivos (chegando a ultrapassar cinco minutos contínuos) a iniciar combate ou enquanto em combate. Talvez seja um sinal das dificuldades de desenvolvimento do jogo já relatadas por vários sítios jornalísticos. Estes pedaços expositivos parecem estar lá colados como um esforço da equipa narrativa para remediar novos rumos ou alterações em cima do joelho; no entanto, também poderíamos dizer que estão lá para não incomodar os jogadores menos preocupados com o enredo e mundo, e que apenas queiram disparar contra qualquer coisa.

Ultimamente, pode ter sido um jogo que teve de sobreviver às suas próprias ambições.

Anúncios “fortes” de jogos por vir criam uma relação complicada com as expectativas coladas sobre essa arte. Confesso que, tal muitos outros, essas expectativas eram enormes para o Atomic Heart. O aspecto surreal dos primeiros trailers, juntamente com gameplay que relembrava as boas memórias do Bioshock quando era miúdo, era difícil não imaginar tudo o que o jogo poderia vir a ser. Não é um sentimento raro (ou exclusivo) despejar esperanças em jogos que nos mexam com a nostalgia de tempos supostamente áureos, exigindo promessas que não foram feitas. Não tenho ideia se alguma vez a expressão “spiritual sucessor” foi utilizada pela equipa de marketing ou em alguma entrevista; no entanto, essa ideia ficou agarrada ao jogo e foi julgado, por muitos, com isso em mente. Os sucessivos adiamentos e os relatórios sobre problemas de desenvolvimento, roubaram-me de continuar a sonhar sobre o Atomic Heart, mas ainda assim, não posso mentir e dizer que não queria que fosse esse impossível “além-do-bioshock”. Posso não ter encontrado esse jogo, contudo, acabei por me divertir com o Atomic Heart, mesmo já tendo perdido o encanto devido às suas frustrações e desilusões. Nota final: 6.0

Atomic Heart no OpenCritic

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